Bon courage, galera!
Galera é uma palavra catalã que designa um tipo de embarcação longa e pontuda, equipada com mastros e velas, embora navegasse sobretudo graças aos remos. Uma fileira deles, de ponta a ponta, reservados para os escravizados ou os tripulantes menos prestigiados. Conhecidas desde a Antiguidade, essas naus serviram tão bem ao comércio quanto à guerra até o século XVIII e a origem do nome está no grego bizantino galea. (O aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, deve sua alcunha a esse ramo etimológico.)
A palavra galera aportou na língua portuguesa e os brasileiros selecionamos seu aspecto gregário. Para nós, a galera é o grupo, a gente toda, talvez até uma pequena multidão.
No francês, galera acabou mais associada à ideia de tarefa a ser executada, e das terríveis: la galère era uma pena à qual os criminosos no Antigo Regime (que acabou em guilhotina) poderiam ser condenados. A depender do delito, o sujeito amargaria a sentença de remar por anos ou mesmo perpetuamente nas galères du roi (que acabou na guilh... bom, vocês entenderam).
« Que diable allait-il faire dans cette galère ? »
– Molière, em Les Fourberies de Scapin (1671)
Por extensão de seu sentido inicial, la galère virou sinônimo de trabalho forçado, daí trabalho árduo e extenuante, e situação odiosa. Mesmo depois que a pena nas galeras foi extinta, suas marcas na língua permaneceram. Atualmente virou até verbo: galérer é passar perrengue, se lascar, enfrentar dificuldades.
Nesse ponto, galère se aproxima de um dos sentidos de travail. Os registros do CNRTL revelam que travail está, desde cedo no repertório do idioma, associado a tormentos, cansaços e esforços pesados – e não apenas um mero ofício. Na convergência do humor e do idioma dos franceses, entendemos por que, no começo de um dia de trabalho, eles se cumprimentam com um "bon courage!"
Essa frase simples, que serviria tão-somente para encorajar as pessoas em alguma circunstância excepcional, lamentável e desafiadora, se diluiu numa fórmula comum, aplicada em dias normais, para tarefas conhecidas, mesmo as que a gente nem considera tão ruins. Bonjour, bonne journée, bon courage.
Esbarrei num livrinho engraçado, desses de desenvolvimento pessoal e profissional, chamado Ne me dites plus jamais bon courage! (*Nunca mais me diga coragem!), no qual o autor denuncia a "traição àqueles que construíram [à custa de muito trabalho] a França ao longo dos séculos". Patriotadas à parte, ele parece recear que os franceses se entreguem demais ao pessimismo e que essa expressão, derivada de uma atitude antipática em relação ao trabalho, traga derrotismo a um expediente promissor, comprometendo a produtividade e, no limite, a vida.
Sei não. Eu gosto desse hábito dos franceses e prefiro encará-lo como uma espécie de revanche da liberdade da língua contra o roteiro estrito e repetitivo da labuta. Desejar-se bon courage sela a cumplicidade com atrevimento e sarcasmo diante das responsabilidades, impostas ou não; é a senha dos ranzinzas, dos desobedientes, dos conspiradores – não dos resignados. São votos para que você ofereça no mercado seu tempo, mas nunca sua devoção, pois esta deve estar depositada em qualquer outra coisa, inclusive em reclamar do trabalho.
Enfim. Segunda-feira, c'est la galère. Bon courage, gente.