Madalena
À Aline M., com pesar e ternura.
Um homem chega em casa, num dia de inverno, aborrecido e com frio. Sua mãe lhe oferece uma xícara de chá, que ele aceita a contragosto. Junto, é servido um bolinho em forma de concha, chamado madalena. Absorto em seu enfado, mecanicamente ele mergulha a madalena no chá e leva a colher à boca. E então, uma das passagens mais sublimes da literatura acontece.
Não quero deixar ninguém curioso: o nosso herói, em contato com o sabor do bolinho molhado de chá, sucumbe a uma avalanche sensorial maravilhosa, uma onda de felicidade que "torna todas as vicissitudes da vida indiferentes". Essa experiência é tão inesperada quanto inexplicável, e o homem, extremamente comovido, se entrega a uma investigação interior a fim de compreendê-la. A resposta surge, o bolinho molhado reviveu uma lembrança, até então esquecida, de seus dias de menino. Era sua tia Léonie que lhe oferecia madalenas molhadas no chá de tília, nas manhãs de domingo, antes que ele fosse à missa.
Beckett entende que, nas mãos de Proust, a xícara é um poço superficial, "de uma banalidade insondável", de onde ele faz emergir a própria infância, "com a profundidade do relevo e todas as suas cores". O chá e o bolinho são elementos banais do cotidiano, como é banal a cena doméstica do menino com a tia; o milagre aqui é a revelação implacável da lembrança, o choque entre o que sabemos e o que ignoramos a respeito de nós mesmos, a força com a qual somos suspensos do presente e fruímos, por um instante, os gostos, os aromas, as sensações do nosso paraíso particular – o tempo perdido.
Mais, quand d’un passé ancien rien ne subsiste, après la mort des êtres, après la destruction des choses, seules, plus frêles mais plus vivaces, plus immatérielles, plus persistantes, plus fidèles, l’odeur et la saveur restent encore longtemps, comme des âmes, à se rappeler, à attendre, à espérer, sur la ruine de tout le reste, à porter sans fléchir, sur leur gouttelette presque impalpable, l’édifice immense du souvenir.
– Marcel Proust, Du côté de chez Swann (1913)
Mas quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação.
– Tradução de Mario Quintana
Essa passagem é a pedra de fundação de uma obra monumental que explora obsessivamente os meandros e proezas da memória. Monumental em mais de um sentido: com cerca de 2,5 mil páginas, À la recherche du temps perdu permanece o mais longo romance já publicado. A extensão da obra é motivo de piada em uma ótima esquete do Monty Python sobre um concurso para resumir a Recherche em 15 segundos – All England Summarize Proust Competition (1972).
A pequena madalena, que nos esboços de Proust chegou a ser um biscoito e uma torrada, condensa em si algo de tão poderoso e reconhecível que foi assimilada na cultura popular dentro e fora da França como um símbolo da rememoração. Para citar um exemplo, há uma cena de Sopranos (1999-2007) em que a doutora Melfi identifica, no relato de Tony Soprano a respeito da carne que seu pai trazia para a família, a dinâmica proustiana da reminiscência e da produção de sentido das experiências vividas. A referência vai ainda um pouco além, com Tony reagindo à explicação da terapeuta com "Isso soa muito gay!" – a homossexualidade é, sem dúvidas, um dos temas centrais (e conflituosos) na Recherche e na biografia de Marcel Proust.
Encontramos outro exemplo na animação Ratatouille (2007), que se passa na França. Embora o nome de Marcel Proust e a madalena não sejam evocados explicitamente, o clímax da história é claramente proustiano: o rato-chef Rémy (uma rima interna de réminiscence) prepara para seu antagonista, o crítico Anton Ego (ah, Freud), a despeito da perplexidade de seus colegas de cozinha, um prato popular, sem nenhum glamour, a ratatouille. Como um insight, Rémy revela a única receita capaz de desarmar o crítico e reconduzi-lo à rota da fruição, longe da abordagem racional/ressentida da comida, quiçá da vida. Vemos, nessa cena, uma tradução gráfica para o milagre do qual falei anteriormente: o instante de existência atemporal do sujeito, degustando, concomitantemente no presente e no passado, uma gotícula de sabor que carrega algo de essencial e eterno. A caneta cai (ah, Freud), o semblante se descontrai e ilumina, o enredo segue para seu desfecho feliz e conciliador. A ratatouille dá nome à história, não apenas porque é um pertinente trocadilho com rat (rato), mas porque aqui, a ratatouille é a madalena, é a chave da revelação.
A Recherche tem passagens belíssimas, a da madalena sendo a mais célebre. Não é exatamente um texto fácil, porém, como tantas obras, ele pode ser navegado livremente, um pouco à margem da ilusão da compreensão total. Talvez, aliás, na zona entre compreensão e incompreensão, entre saber e não saber, essa obra de arte opera seu maior feito – inspirar cada indivíduo a empreender sua própria busca, decifrar a si mesmo e coletar, no arcabouço de suas mais recônditas lembranças, esses emissários dos sentidos (do paladar, do olfato, da audição) que nos garantem uma espécie de "eternidade efêmera" (Beckett, de novo) e que, no limite, salvam as nossas vidas.
Tal postura é um dos imperativos da obra, inclusive. Em Le temps retrouvé (1927), o sétimo e último tomo da Recherche, o narrador declara que nós, os leitores, somos antes leitores de nós mesmos do que dele, e que com sua narrativa, ele nos dá os meios para realizarmos essa leitura particular. Diante de uma proposta tão irresistível, eu procuro, sempre que possível, aproveitar pedagogicamente a mitologia da madalena nas aulas de língua francesa. Em algum ponto dos cursos, situo o escritor Proust na tradição literária francesa, apresento o clássico excerto e convido meus alunos a revelarem sua própria madalena.
Assim, ao longo dos anos, tenho lido e ouvido relatos nos quais o café com leite, o pão molhado no café com leite, o café preto, o leite com chocolate, o bolinho de chuva, o pão quentinho com manteiga derretendo, o charuto de arroz e carne moída, a laranja descascada à mão depois do almoço, o sabonete de glicerina, o barulho da chuva batendo na treliça da janela, o biscoito de mantecau, o queijo com goiabada, o sorvete tomado na praia, a música Lady Laura do Roberto Carlos, o cuscuz, a voz da Mercedes Sosa, o purê de batata, o brigadeiro comido na panela, o pastel de carne, em suma, inúmeros fragmentos cotidianos se tornam portais com acesso direto à presença e ao afeto de avós, avôs, mães, pais, tias, tios, irmãos, primos, amores, amigos. Como metonímias de uma dimensão onde essas coisas e pessoas e sentimentos podem permanecer protegidos do efeito inexorável do tempo, esses relatos, cada um deles, são reiterações da modesta vitória da memória sobre a morte.