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Nonsense

A prosódia, conjunto de ritmos e modulações que formatam a musicalidade de uma língua, ajuda também a dar sentido ao que é dito.
Nonsense

Conheci uma vez um rapaz, numa festa, que imitava línguas que ele não falava. Desafiado pelas pessoas, que escolhiam idiomas ao sabor do acaso, ele emitia fonemas aleatórios, próprios a um conhecimento superficial de cada língua, mas perfeitamente reconhecíveis num todo, graças à melodia. Capaz de imitar a musicalidade de línguas que seus interlocutores podiam ou não conhecer bem, ele gerava sensações de farsa e familiaridade tão inusitadas que arrancava risadas – como todo bom humorista, que brinca com as expectativas de seu público.

Uma parte importante da aquisição de uma língua estrangeira repousa na prosódia – ou seja, sua musicalidade, os ritmos e modulações que lhe dão particularidade. No caso do francês, as primeiras lições de fonética dos cursos se concentram nesse exercício, com o objetivo de habituar os alunos a adaptarem sua respiração, descobrirem as pausas, alongarem as sílabas certas. Não se trata de uma questão estética, de embelezamento da pronúncia, mas de sua adequação às expectativas dos outros falantes, cujas orelhas habituadas a um determinado ritmo se apressarão em decifrar as intonações escutadas. É também um modo de entender melhor o outro, pelos mesmos motivos: conhecendo a melodia da língua, você entra na mesma dança, você aprende a decifrar melhor o que é dito enquanto é dito.

Vamos ao exemplo: a frase "les petits pois sont dans l'eau" (as ervilhas estão na água) deve ser pronunciada mais ou menos como [lê peti puáa / som dam lôo], com pausa no meio e alongamento das sílabas finais dos grupos (puá e ). Uma pronúncia que organize diferentemente a pausa e o ritmo da frase pode acabar em [lê peti puássoom / dam lôo], que será interpretado como "les petits poissons, dans l'eau" (os peixinhos, na água). O francês é uma língua com uma quantidade vasta de homófonos (mesmo som para ortografias e significados diferentes); explorar esse aspecto do idioma costuma ser uma parte divertida do curso.

Eu trouxe a prosódia e a homofonia para a newsletter porque, um dia desses, um aluno me fez descobrir a música Nonsense, composta por Guinga e Paulo César Pinheiro, que de maneira brilhante aproveitam esses aspectos da língua com efeitos artísticos únicos. A melodia é inspirada nas chansons françaises clássicas, acompanhadas por acordeão e eternizadas por nomes como Édith Piaf, Yves Montand, Jacques Brel, entre tantos outros. A letra, bela e tristíssima, se dirige a uma mulher que tira a própria vida. O amante se declara, a observa, a vela e lamenta sua partida:

Recomendo muito as interpretações da Miúcha e da Mônica Salmaso. Há pequenas variações de pronúncia e escolha entre elas (e ainda outras poderiam ser feitas, dentro da mesma ideia de alterar o ritmo dos versos para fazer surgir novas palavras). De toda forma, as duas versões convergem no que é fundamental.

Aplicando a pronúncia francesa em palavras portuguesas, as cantoras já conseguem imprimir, como aquele rapaz, a sensação de estarmos ouvindo uma legítima chanson. Os versos, perfeitamente organizados segundo sintaxe e léxico do português, funcionam também como um longo virundum bilíngue, no qual, dependendo do ritmo e da concatenação das sílabas, palavras em francês de fato se revelam. Nessa outra letra subjacente, porém, os versos são soltos e desestruturados, dependentes dos encontros de homofonia entre os dois idiomas. Lembremos que Chico Buarque também já se serviu desse recurso em Joana Francesa (acorda, acorda, acordad'accord, d'accord, d'accord).

Assinalei em vermelho os falsos cognatos e alguns desses virunduns para facilitar a visualização da riqueza linguística dessa letra:

O nonsense a que se refere o título, claro, admite de largada o truncamento do sentido da letra em francês, sem excluir a dimensão metafísica que a letra em português apresenta, que é a falta de sentido da morte autoprovocada, da vida sem a amada, quiçá da vida no geral. Não que uma coisa impeça a outra, aliás, a resposta ao absurdo e ao luto pode ser justamente essa redução da linguagem aos seus termos mínimos e balbuciantes, que sintetizam mais do que descrevem ou narram: amor, canção, acabou teu romance, vida, vague, onda, tudo está perdido, alma, sonho, vingança, eu amo, eu amo, te amo, silêncio negro, coração, adeus.

Outra coisa, ainda. A discrepância entre esses dois registros de língua, um eloquente e outro precário, é também como muitos falantes vivenciam a entrada num idioma novo. Em comparação com os pensamentos sofisticados que somos capazes de expressar em língua materna, frequentemente a estrangeira parece uma versão limitada e confusa. E nas fases iniciais dos cursos, quando é preciso estabelecer os alicerces, fixar os elementos mínimos, recitar frases simples e palavras dispersas, é a prosódia que ajuda a dar uma liga. Treinando a melodia, ou seja, aprendendo a cantar o idioma, os alunos vão encontrando, dentro das regras da prosódia, os moldes de uma nova formatação para sua própria voz.