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Palavras que viajam (I)

As palavras vêm sempre de algum outro lugar, viajam tão longe quanto as pessoas são capazes de ir. E quanto mais inusitado o itinerário, mais interessantes são.
Palavras que viajam (I)
Tangier, Marrocos. Menino com camisa de futebol azul (número 7, nome Ronaldo), brinca de amarelinha. Foto de Matteo Basile.

A grande quantidade de palavras que o português tomou do francês ao longo dos séculos compõe hoje nosso repertório com toda bossa. (Por favor, permita-se ouvir a música "Cabrochinha", que usa várias com tanta graciosidade, para entrar no clima.) Quase todo mundo consegue citar menu, purê e abajour como exemplos de galicismos. É fácil constatar que a gastronomia, a moda e a arte são campos privilegiados pelo contato entre os dois idiomas. Porém, há muitas palavras emprestadas em setores que permanecem insuspeitos de influência, como a construção civil. O tubo que conduz os fios de uma construção, o conduíte, vem do verbo conduire. A betoneira que mistura o cimento (béton), também. Pavé, antes de virar uma sobremesa e uma ótima piada em português (é pavê ou pacumê?), era apenas o bloco de pedra que reveste o chão, aquilo que o pavimenta (pavement).

Os empréstimos são um fenômenos intrínseco à comunicação humana e demonstram que nenhuma cultura sobrevive ao teste da pureza com a qual alguns (infelizmente) fantasiam. As palavras vêm sempre de algum outro lugar, movem-se tão longe quanto as pessoas ousam ir. E quanto mais inusitado seu itinerário – com apropriações, distorções, extensões, confusões – mais interessantes são. Desejei, portanto, fazer uma seção de curiosidades etimológicas para mapear um pouco dessas viagens. Começaremos com as três que seguem.

Amarelinha
Sabe-se que o jogo da amarelinha existe desde o Império Romano e que servia como um elemento de treinamento militar. Talvez um percurso esquadrinhado no chão, exigindo precisão, saltos e equilíbrio, fosse divertido demais para soldados. Foi elevado a brincadeira de criança em vários países. Se eu tivesse que organizar em categorias temáticas os nomes que esse jogo tem mundo afora, diria que a maioria deles faz referência I) ao aspecto gráfico ou prático do jogo (as linhas, as casas onde se pisa, os objetos jogados); II) ao aspecto físico (os pulos); ou III) à jornada metafísica que ele mimetiza (o curso da vida).

Na Rússia é chamado klássiki, diminutivo de “classes”, enquanto na Suécia leva o nome de hoppa hage (pular o jardim) e, na Noruega, de paradis (paraíso). Um de seus nomes na Itália é mondo (mundo). Na Índia é conhecido como thikrya, em referência às pedras quebradas usadas para deslizar sobre o tabuleiro. Já no Japão, chama-se Ken Ken Pa, em que a expressão imita o ritmo da brincadeira (pular em um pé só, Ken, e depois com os dois pés, Pa). Em inglês é hopscotch, uma composição de hop (pulo) and scotch (arranhado, gravado no chão). Em Portugal, é jogo da macaca (por causa dos saltos). O jogo se chama semalha em Angola; na Coreia do Sul, sabangchigi (bater nos quatro cantos), referência ao tabuleiro em cruz. No Vietnã, nhảy lò cò (pular num pé só); em espanhol, rayuela (joguinho das riscas), pelo tabuleiro desenhado no chão. No Egito e em outros países árabes, é al-ḥajala (pular com um pé só). Na Grécia, koutso (manco).

E no Brasil, embora haja tantos outros nomes em todas as regiões, me parece que amarelinha prevalece. A referência à cor amarela foi um mistério para mim, até descobrir que se tratava de um galicismo delicioso.

Em francês, o jogo da amarelinha se chama marelle, que é o nome da pedrinha jogada pra marcar a casa. Jeu de la marelle entrou nos ouvidos tupiniquins, provavelmente através de uma classe de portuguesas que trouxeram sua francofonia para a vida doméstica e infantil durante os anos de Império. "Amarelle" não é o nome da cor em francês (é jaune), mas bem que poderia ser. Esse som se acomodou bem demais à familiaridade com amarelo, ganhou diminutivo afetivo, virou coisa nossa. E não prejudica essa tese de etimologia (bem aceita, dicionarizada, mas ainda não comprovada) o fato de que, em algumas regiões do país, o jogo se chama maré.

Marmita
Em português, marmita é a comida que se leva para comer fora de casa, especialmente no trabalho. Praticamente um símbolo de classe social, ela tem seu nome tirado do francês marmite, que é um tipo de panela. (É também a marca de um molho salgado à base de levedura de cerveja, cujo logotipo é, ora veja, uma panela.) A travessia de continente → conteúdo nem é surpreendente no campo da semântica, mas a história completa é engraçadinha.

No século XIII, algumas fontes indicam registros de 1223, marmite era um adjetivo que significava hipócrita ou falso. Vinha, aliás, de uma mistura de mar (murmurar) e mite (gato, bichano), num termo que evocava os trejeitos e sons melosos que usam os felinos para conseguir o que querem.

Car bien sou faire le marmite,
Si que je resembloie hermite
Celui qui m’esgardoit defors
Mais autre cuer avoit ou cors.
Rutebeuf, Leçon sur hypocrisie et humilité (~1260)

Pois bem sabia eu ser dissimulado,
De modo que eu parecia um ermitão
Àquele que me olhasse de fora
Mas no corpo eu tinha outro coração.

Desde pelo menos o século XVII, marmite pertence às coisas da cozinha. Lá, a palavra nomeia um tipo de panelão fundo e tampado que, diferente de frigideiras, rasas e abertas, esconde a comida – como os falsos escondem seus verdadeiros sentimentos. Deu-se tão bem a marmite no meio doméstico que surgiu a expressão faire bouillir la marmite (fazer a panela ferver), significando "ganhar bastante dinheiro para sustentar o lar, prover para a família".

Recentemente, o português brasileiro levou a marmita um pouco além e lhe deu uma conotação erótica, como alcunha para o terceiro elemento de uma relação sexual a três, aquele que se faz devorar por um casal (Houaiss também a lista entre os sinônimos de prostituta). Na esteira do erótico veio o escárnio e até o político, dando à marmita tons pejorativos de submissão. Creio que qualquer um que frequente a internet brasileira entenderá o que significa dizer (num exemplo complentamente aleatório) que fulano é marmita de miliciano.

E tudo começou, provavelmente, com um gatinho fazendo charme para garantir o almoço.

Cougar
Aqui o trajeto é inverso. Cougar é uma palavra inglesa que veio do francês couguar. Esta permanece o nome de um felino selvagem das Américas (a puma), enquanto aquela derivou o significado original em gíria para mulheres maduras com um comportamento sexual ativo e atrevido, interessadas em rapazes mais jovens – já nós temos a loba para representar a classe.

Não é tão sabido, contudo, que couguar tem origens no português cuguacuarana ou cucuarana, nada menos do que nossa magnífica onça-parda, ou suçuarana em tupi. Grafada de diversas formas nos relatos de viajantes e exploradores lusitanos do século XVI, suçuarana foi perdendo sílabas em benefício da facilidade dos falantes europeus, até se assentar como couguar no francês do século XVII.

E o resto é história, ops, etimologia.