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A negação, passo a passo

Pas é passo, o passo de dança, o passo de marcha. Como pas virou negação em francês?
A negação, passo a passo
Mais tout comme lui ils ne savent toujours pas
Rejoindre le troupeau ou bien marcher au pas
– Georges Moustaki,
Les amis de Georges

Tem pergunta que eu torço para aluno fazer porque gosto da história que serei levada a contar. No caso da negação do francês, a pergunta (por quê?) geralmente vem do estranhamento em relação a outras línguas: numa lista que inclui não, no, not, nein, na, nu etc, o pas parece mesmo um pouco exótico.

Do começo: a negação em francês se faz com dois elementos, o ne... pas para dizer algo como je ne travaille pas (eu não trabalho). Essa fórmula não é completamente inusitada ao português, aliás, basta notar que dizemos eu não vou não, eu não fiz nada, eu não conheço ninguém, eu não viajo nunca etc. A dupla negação é tão comum entre nós que nem sempre nos damos conta de sua presença.

De volta ao francês, cuja negação originalmente se limitava a non e ne, oriundos do non latino que deu em não (no português) e no (italiano e espanhol). Até o século XI, dizia-se simplesmente je ne peux, je ne veux (eu não posso, eu não quero). A partir daí, começam a surgir registros de uma negação composta bipartida, por conta de uma necessidade de reforço, de complementação – e para isso, o segundo termo da negação tinha seu sentido ligado ao do verbo.

Com exemplos fica melhor. Dizia-se je ne bouge point, sendo point uma parcela de terra, uma medida de espaço: eu não me movo (um pedaço sequer). Outras negações específicas apareceram, como as referentes à comida. Goutte (gota) para os líquidos e mie, que vem de miette (migalha), para os sólidos: je ne bois goutte (eu não bebo uma gota sequer), je ne mange mie (eu não como uma migalha sequer).

E o pas? Pas é passo, como passo de dança, passo de marcha, aquele deslocamento que se faz com os pés. Assim sendo, pas surge em 1080 como reforço de negação também associado a verbos de movimento: n'avancez pas (não avancem um passo sequer), je ne marche pas (eu não ando um passo sequer).

No decorrer dos séculos, o sentido específico dos complementos de negação se perdeu e eles passaram a ser usados mais livremente. Em meados do século XVI, já se aceitavam construções de negação bipartida mas com um sentido simples como il ne voit goutte (ele não vê), je ne peux mie (eu não posso), vous ne comprenez point (você não entende). Inclusive, on n'y voit goutte sobrevive como expressão fixa da língua até hoje com o sentido de não dá pra ver nada. E algumas regiões do norte da França preservam ainda formas variadas de negação como ne... pièce, ne... mèche, ne... brin (usando peça, mecha e fio respectivamente).

Uma vez que a negação bipartida se estabeleceu como necessária na norma da língua francesa, as formas mie e point foram durante muito tempo preferidas pelos falantes em diversos registros, do familiar ao erudito. Contudo, pas prevaleceu sobre (todas) elas e as relegou à condição atual de arcaísmo ou regionalismo.

Pas prevalece também sobre o ne, o elemento negativo original, cada vez menos presente na oralidade – como no inconfundível ch'pas (je ne sais pas, eu não sei). A ocorrência de ne já começa a diminuir na língua escrita, também. Aliás, aqui e ali surgem expressões que prescindem de qualquer traço de negação e contam com o contexto e a intonação para serem adequadamente compreendidas: t'inquiète (não se preocupe) ou t'occupe (não se meta). Talvez outro elemento de negação apareça no futuro.

Quanto a nós, no português, também prescindimos do primeiro não, às vezes com expressões singulares:

Por sua vez, o "porra nenhuma!" atendeu tão plenamente as situações onde nosso ego exigia não só a definição de uma negação, mas também o justo escárnio contra descarados blefes, que hoje é totalmente impossível imaginar que possamos viver sem ele em nosso cotidiano profissional. Como comentar a bravata daquele chefe idiota senão com um "é PhD porra nenhuma!", ou "ele redigiu aquele relatório sozinho porra nenhuma!". O "porra nenhuma", como vocês podem ver, nos provê sensações de incrível bem estar interior. 
– Millôr Fernandes, em
Palavrões são importantes

Ah, que delicada a brisa constante das mudanças linguísticas, né não?