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A língua de Aya Nakamura

Aya Nakamura não fere a tradição da língua e da arte francesas, pelo contrário, ela a honra e perpetua.
A língua de Aya Nakamura

Aya Nakamura, para quem não conhece, é uma cantora pop. Mais especificamente, a artista francófona mais escutada no mundo atualmente. Genuína representante de sua geração, começou a escrever letras ainda na adolescência e, aos 19 anos, lançou suas primeiras músicas no Youtube, onde teve alguns milhões de visualizações. Fez sucesso nas redes sociais, trabalhou em parceria com artistas renomados do rap, lançou um álbum, depois outros e o resto é história. Agora, aos 29 anos, Aya Nakamura é uma superstar. Tanto, que às vésperas dos Jogos Olímpicos de 2024, sediados em Paris, surgiram rumores de que ela cantaria na cerimônia de abertura uma música de Edith Piaf. Uma estrela da música do presente prestando homenagem a uma do passado, numa convergência emocionante e bastante apropriada para o espírito olímpico.

O nipônico Nakamura virou seu nome artístico por inspiração no personagem Hiro Nakamura, da série americana de ficção científica Heroes, da qual é fã. Seu nome de registro é Aya Coco Danioko, ela nasceu no Mali e era um bebê quando sua família migrou para a França. Cresceu na periferia parisiense e obteve a cidadania francesa em 2021. Também nisso tudo Aya traduz perfeitamente sua geração: uma jovem negra, filha de imigrantes tentando a vida numa metrópole cosmopolita, mergulhada em referências culturais as mais diversas. A bricolagem de sua identidade é o solo dos nossos dias.

A revelação de que o comitê olímpico (supostamente) planejava colocar essa mulher no centro do palco e do mundo, naquele instante de celebração e integração dos povos, enfureceu a extrema-direita francesa. O que se viu então foi uma sequência de manifestações de políticos alegando, em suma, que "ela não representa a França". O Journal du Dimanche, jornal que hoje abriga neocons e coisa pior, publicou uma coluna lamentando "o sacrifício da identidade, da história e da cultura (ali, isso queria dizer catolicismo) no altar de um evento esportivo". Citaram Aya Nakamura cantando Piaf entre os sinais da degradação nacional e do abandono dos valores legitimamente franceses.

Uma pesquisa indica que 73% dos franceses pensam que Aya Nakamura não representa a música francesa e 63% se declaram contrários à ideia de tê-la como estrela da cerimônia de abertura. Houve manifestações abertamente discriminatórias na internet. Organizações civis antirracismo fizeram denúncias, uma investigação foi aberta. A ministra da Cultura veio em sua defesa, artistas como Omar Sy e Waly Dia, também. A própria Aya Nakamura se pronunciou, e com maestria: "Vocês podem ser racistas, mas não surdos. É isso que incomoda! Eu me tornei um assunto de estado número 1 em debate, mas o que eu realmente devo a vocês? Absolutamente nada."

Y a pas moyen, Djadja
J'suis pas ta catin, Djadja, genre, en catchana baby, tu dead ça
– Aya Nakamura,
Djadja

Não surpreende que Éric Zemmour e Marion Maréchal (entre outros) tenham usado o idioma como arma para agredir Aya Nakamura: "Suas músicas não são em francês!" (são, sim), "Ela não canta em francês!" (canta, sim). Um grupo chamado "Les Natifs" se atreveu a responder ao tweet no qual Aya nomeia a índole racista dos protestos "corrigindo-o". A língua é um elemento frequentemente instrumentalizado para que gente dessa estirpe se registre na agenda política reacionária. A "língua de verdade" é uma fantasia, claro, porém uma fantasia muito duradoura e eficaz em seus propósitos.

Carreiras políticas podem ser feitas com a promessa simplória de um muro que barre a entrada de imigrantes em um país e mantenha "pura" a composição populacional – alguns são um pouquinho menos obtusos do que Donald Trump e instalam um muro simbólico e linguístico. Mas ainda é apenas um muro. Para ficar no primeiro e mais evidente exemplo: Édith Piaf era neta de uma Emma Saïd Mohamed e talvez não representasse a "verdadeira" França aos olhos de alguns desses conterrâneos.

A língua que Aya Nakamura inscreve na história da francofonia é fruto de suas escolhas estéticas e corresponde perfeitamente a sua idade, época, bagagem, estilo, público. Ela se serve de gírias da periferia francesa, do francês antilhano, de palavras do inglês, do espanhol, do árabe, do créole, de línguas regionais do Mali e da Costa do Marfim e as submete a processos de distorção e composição próprios. Ela dispõe do idioma – seus ritmos e sentidos – de maneira livre e criativa, como todo compositor talentoso faz e fez ao longo da história, incluindo os figurões da chanson française que a extrema-direita (agora) idealiza.

Parle en français, sois clair (En vrai)
J'ai passé l'âge de jouer, j'ai dit
Toi et moi, on se sait, yeah
N'en fais pas trop, s'te plaît (Yeah)
On perd déjà du temps à tester nos limites (Eh)
Ma présence coûte cher, dis-moi quel est mon bénéf'
En moi, tu pourrais voir nos projets, l'avenir
Mais nous brûler les ailes, il faudrait éviter, yeah
– Aya Nakamura,
Doudou

A língua, a cultura e a arte não percorrem na França caminhos distintos de nenhum outro país; desde Rabelais elas contam com contribuições populares, desviantes, inovadoras, estranhas, miscigenadas, subversivas, não-clássicas, não-acadêmicas para permanecer vivas. Sob esse ponto de vista, Aya Nakamura não fere a tradição da língua e da arte francesas, pelo contrário, ela a honra e perpetua. A única ameaça que Aya apresenta é contra a fantasia de uma identidade francesa fixa, exclusivamente branca, eurocêntrica e elitista.

Um dado da biografia da Aya me encanta: que ela é descendente de griots, um ofício honroso na região do antigo império do Mali, na África subsaariana. Trata-se de uma casta de bardos que testemunham os eventos (nascimentos, casamentos, falecimentos) e recitam, de cor, tanto as histórias particulares das famílias quanto o curso dos dramas humanos. Os griots são guardiões da genealogia, da memória coletiva de suas comunidades, e permanecem incumbidos de manter todo esse repertório vivo através da prática oral, com poesia e canto, geração após geração. A mãe de Aya é griotte e ela não hesita em creditar a essa linhagem sua relação feliz com a música.

A ideia de Aya Nakamura representando seu próprio país na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos trouxe à luz uma inquietação com a língua que há anos já se apresenta em diversos artigos e entrevistas. Mais de uma vez, Aya foi instada a explicar suas letras e justificar sua linguagem, mais de uma vez ela respondeu simplesmente que é assim que ela e muitos outros falam. Essa língua é sim francês, é uma das configurações possíveis do francês, é a língua de Aya Nakamura. Os franceses gostam de chamar seu idioma de "la langue de Molière", então é esse brilhante escritor e sua sabedoria a respeito da transitoriedade que eu evoco para encerrar meu texto:

« Les anciens, monsieur, sont les anciens, et nous sommes les gens de maintenant. »
– Molière, em Le malade imaginaire (1673)

Que quer dizer: Os antigos, senhor, são os antigos, e nós somos a gente do presente.