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Chez soi

Por operar como uma noção de casa sem reclamar seu nome, o uso de chez se tornou muito versátil.
Chez soi
Edward Hopper, Sun in an Empty Room (1963)

Chez, a gente aprende logo no curso de francês, é uma palavrinha curta e simpática que significa "na casa de". Je rentre chez moi, eu volto para casa (a minha casa), tu es chez toi, você está em casa (na sua casa). O que essa palavra tem de curioso é que, primeiro, ela não apenas quer dizer "na casa de", mas surgiu diretamente da palavra casa, do latim, que significava cabana, casebre, daí moradia.

Desde o francês arcaico do século XII há registros de chiés e ches, derivados do étimo latino casae e empregados como "na casa de". Em português, espanhol e italiano, casa é um substantivo e pode exercer diversas funções sintáticas (sujeito, objeto, locativo...), além de ser passível de declinação e derivação. Na plasticidade do português, por exemplo, podemos dizer casinha, casarão, casebre, caseiro, casar, casamento etc. Em francês, o chez não permite nada disso.

Isso se deve ao segundo fato interessante a respeito de chez: trata-se de uma preposição. As preposições não são a categoria mais prestigiada em nenhum idioma, visto que responsáveis por grandes confusões e traições no momento de formular uma sentença. São pequenas ferramentas da língua, subordinadas a elementos mais nobres, relacionando-os (brinquedo da criança, viajar em família).

Em toda sua modéstia, contudo, as preposições não deixam de carregar um significado. Veiculam noções de companhia, ausência, relação, maneira, instrumento, origem, destino etc. Todos entendemos a diferença entre viver sem amor, por amor e com amor.

Como preposição, chez porta seu sentido e permanece invariável na frase, fazendo a ponte entre verbos de estado e locomoção (être, rester, aller, venir...) e alguém (moi, toi, nous...).

Hé viens chez moi
J'habite chez une copine
J'ai mon mat'las dans la cuisine
– Renaud,
Viens chez moi j'habite chez une copine (1981)

Por operar como uma noção de casa sem reclamar seu nome, o uso de chez se tornou muito versátil. Chez moi não é necessariamente uma maison; é, antes, um lar, parte da história pessoal, é onde estão a família, os gatos e a conexão automática no wi-fi. Je suis chez moi se refere a um espaço que me é próprio por questões subjetivas, muito mais do que pelas paredes e teto que o constituem.

Un petit chez soi vaut mieux qu'un grand chez les autres. – Provérbio francês

Usamos chez para designar o consultório médico (chez le médecin), a padaria (chez le boulanger), o mercadinho (chez l'épicier) porque houve um tempo em que esses e vários outros profissionais liberais moravam no andar de cima dos estabelecimentos onde trabalhavam. Sua vida profissional era uma extensão da doméstica e as construções refletiam isso.

Édouard Manet, Chez le père Lathuille (1879)

As soluções da vida e da arquitetura mudaram, mas não as da língua. Chez le poissonnier é a peixaria porque continua sendo o lugar próprio do peixeiro, enquanto ele exerce a função de peixeiro. Às 18h, quando o peixeiro tira o avental e volta para casa, a casa dele, chez transita de outra forma: il rentre chez lui.

Se chez atribui o lugar próprio de alguém num determinado contexto, então não é de se estranhar que chez indique, por extensão, um país. Estar e sentir-se em casa, em se tratando da terra natal – uma cidade, uma região, um povo, – significa, também, être chez soi. E vai além. A ele compete igualmente indicar um recorte social, um grupo, uma comunidade, uma identidade: chez les jeunes (entre os jovens), chez les Noirs (entre os negros), chez les Ch'tis.

A casa que existe no coração da palavra chez é tão maleável que ela pode ser uma época – o tempo dos ancestrais, o tempo dos romanos, dos gregos antigos. Entre pessoas de outras eras, nas suas moradias e comunidades, mas, sobretudo, segundo seus valores e costumes, chez também cabe.

La profession de comédien était infâme chez les Romains et honorable chez les Grecs ; qu'est-elle chez nous ?
– La Bruyère, Les caractères (1688)

Há ainda um outro uso, que me encanta. É quando chez abdica de suas possibilidades cartesianas de tempo-e-espaço para atribuir a um autor seu lugar na posteridade. Na obra de Rabelais, em Yourcenar, chez Montaigne. Chez se presta, enfim, a anunciar o espírito e as palavras, assegurando que a obra de alguém é capaz de manter seu pensamento aberto à visita e exploração.

Chez Molière, il n'y a rien de plus sérieux que la farce ni que le rire qu'elle provoque.
– Michel Edwards,
podcast France Culture

A força da ideia de um lugar essencial é tamanha que gerou uma expressão hiperbólica, de chez, que pode ser usada ao gosto do falante. Uma cidade feia é "moche de chez moche", um vestido de um vermelho muito puro é "rouge de chez rouge", uma pessoa incrivelmente estúpida é "nulle de chez nul" etc.

Je n’ai pas osé me défiler quand elle m’a proposé d’aller voir son chien, il n’avait que quelques mois ; c’était un mâle, noir de chez noir. — Dominique Fabre, Les Soirées chez Mathilde (2017)

Para uma preposição, a palavra chez toca limites ousados de abstração e de subjetividade. Ainda assim, não se perde de si mesma. Chez veicula, em todos os casos, um sentido de pertencimento, uma delimitação de qualquer natureza que separa o dentro e o fora, o aqui e o além, o próprio e o alheio – um arranjo onde seja possível de alguma forma, e por algum tempo, permanecer.

Les mots – je l’imagine souvent – sont de petites maisons, avec cave et grenier. Le sens commun séjourne au rez-de-chaussée, toujours prêt au ‘‘commerce extérieur’’, de plain-pied avec autrui, ce passant qui n’est jamais un rêveur. Monter l’escalier dans la maison du mot, c’est, de degré en degré, abstraire. Descendre à la cave, c’est rêver, c’est se perdre dans les lointains couloirs d’une étymologie incertaine, c’est chercher dans les mots des trésors introuvables. Monter et descendre, dans les mots mêmes, c’est la vie du poète.
– Gaston Bachelar, La poétique de l'espace (1961)

As palavras — eu imagino frequentemente — são pequenas casas, com porão e sótão. O sentido comum habita o térreo, sempre pronto para o "comércio exterior", se dando com todos, esses transeuntes que nunca são sonhadores. Subir a escada na casa da palavra é, degrau a degrau, abstrair. Descer ao porão é sonhar, é se perder nos longínquos corredores de uma etimologia incerta, é buscar nos vocábulos tesouros impossíveis de encontrar. Subir e descer, dentro das próprias palavras, é a vida do poeta.

Há uma promessa de casa numa cama, numa vila, num vale, num ofício, numa lembrança, em outras pessoas, quem sabe até nas palavras. Às vezes, o idioma oferece também um chez-soi.