Crônica do fim
Um curso pode acabar por diversas razões. Acontece, e é normal, que de repente o aluno precise interromper as aulas. Os cursos particulares costumam ser abertos, mais livres em relação ao calendário e aos módulos das escolas, o que os tornam, também, mais suscetíveis a imprevistos financeiros, de agenda, de disponibilidade, de arranjos da vida.
Porém, pode acontecer de o curso, por sua própria lógica, simplesmente acabar. Às vezes o aluno e/ou o professor sentem que aquele compromisso cumpriu seus objetivos inciais e é hora de repactuar ou encerrá-lo. A escolha costuma ser do aluno e há uma beleza específica, delicada, quando ele decide pôr um fim.
A grande premissa da relação entre professor e aluno é que, a partir de uma dinâmica institucionalizada (encontros organizados com seus horários, períodos, métodos, local), um determinado conhecimento será compartilhado, elaborado, produzido, fixado, expandido. Mais até do que institucional, essa dinâmica é ritualizada, isto é, ela tem um aspecto cerimonial, evocativo, ela estabele um contexto com esse conjunto de hábitos, de falas, de interação. E esse contexto, em si, é o solo fértil da aprendizagem.
Uma característica essencial na relação entre professor e aluno é que, uma hora, ela precisa encontrar seu termo. O aluno não é aluno para sempre, o ambiente da aula não pode ser definitivo, ele é sempre circunstancial e provisório. Num curso escolar, os ciclos de semestres e anos determinam previamente o fim, por questões práticas, embora isso sirva também ao caráter ritualístico da aprendizagem. O curso particular, mais aberto, transfere a responsabilidade do fim aos sujeitos envolvidos. Quando não são as contingências da vida que interrompem um curso, é o desejo que fará isso.
E é bonito, como eu dizia, quando um aluno, cheio de cuidados, me diz que sente que pode ou precisa seguir em frente. A função do professor é mediar a relação entre o aluno e um assunto e, portanto, o sentido de um curso é necessariamente seu fim. No momento em que o aluno prescinde do professor, ele passa a lidar sozinho com a coisa, com o mundo. O ofício do professor precisa desse momento para se confirmar. Ou, usando uma metáfora do Rubem Alves, o professor deve ensinar alguém a nadar sem nunca esquecer que a relação que importa ali não é entre o aluno e ele, mas entre o aluno e a água.
A animação Soul (2021) trata de questões metafísicas como a existência da alma, o sentido da vida humana, a continuidade após a morte. Dentro dos limites do gênero infantil e, claro, da empresa que a produziu, pode-se dizer que é um filme experimental e profundo (mas não sem problemas). Ali eu vi, também, uma carta de amor ao magistério. Joe, além de músico, é professor. No mundo espiritual, ele se torna mentor de Vinte e Dois e deve ajudá-la a descobrir sua faísca, aquilo que a fará experimentar a vida de maneira inequívoca, prazerosa, única. Essa relação se dá entre altos e baixos, já que os interesses e necessidade de Joe de recuperar a própria vida concorrem com o desejo de Vinte e Dois de não viver. Em síntese, o professor deve ensinar algo que a aluna resiste em aprender – uma alegoria talvez demasiadamente precisa.
A cena que consolida o êxito desse processo, contudo, é a da despedida. Vinte e Dois descobre a faísca, está pronta para encarar a vida humana, mas ainda sente medo de mergulhar. Joe a acompanha nesse grande salto e, num determinado momento, não é mais possível continuarem juntos. Ele precisa deixá-la partir, ela precisa deixá-lo para trás. Numa escola, isso implicaria que Vinte e Dois passou de ano, vai aprender coisas novas e mais complexas, enquanto Joe receberá uma nova aluna/turma e conduzirá um novo ritual. É por isso que todo professor secretamente trama sua morte simbólica: no final do curso, ele precisa ser superado.
É conhecida a carta que Albert Camus enviou a seu primeiro professor da infância, Monsieur Germain, logo depois de ser laureado com o Nobel de Literatura em 1957. Agradece pelo afeto e ensinamentos, sem os quais, diz ele, nada daquilo teria lhe acontecido. Germain responde, com humildade e clareza, que o mérito é todo de Camus. Lembra que ele era brilhante desde pequeno e que seu ofício é tentar ajudar os meninos a descobrirem seus próprios caminhos.

Acredito que nós professores temos o privilégio de acolher os alunos com seus sonhos, ambições e potenciais, auxiliá-los a entender um pedacinho desse mundo, acompanhar (e ser acompanhados) durante um período de nossas vidas. Depois, nos resta torcer para que tudo corra bem para cada um deles. E, quem sabe, receber uma cartinha de vez em quando, com uma lembrança e um abraço. Pois há vaidade nisto: queremos ser superados, mas não necessariamente esquecidos.