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Em busca do tempo composto

O passé composé é um tempo verbal para contar o passado com os pés fincados no presente.
Em busca do tempo composto

Costumo dizer que o mais difícil, no percurso de aprendizagem do francês, é o começo. Os maiores desafios estão lá: a distância entre ortografia e pronúncia, a excentricidade dos números e, enfim, o passé composé. Para quem tem um contato prévio com o inglês e o espanhol, a existência de um tempo verbal composto, com o correspondente do haver como auxiliar, nem é particularmente estranha. Mas o uso do être como auxiliar e a concordância dos particípios parecem puro capricho. Conhecer a história não resolve, mas muitas vezes ajuda. Então, vejamos.

No latim clássico, o verbo habere (que deu em ter/haver, avoir, avere, haber e também to have) exprimia estritamente o sentido de posse e o particípio, um estado, como um adjetivo. Assim,

Amicitiam non habent cognitam. – Cícero
Amizade [eles] não têm conhecida.

significa, numa tradução literal, "Eles não têm (ou seja, não possuem) a amizade (como algo) conhecido" e, numa versão mais clara para nós, "Eles não conhecem a amizade". Essa é uma sentença que exprime um presente no qual a amizade permanece um sentimento desconhecido. A ideia de passado germina aí, quando o particípio exprime uma ação que foi realizada:

Naves quas paratas habebat. – César
Embarcações que [ele] preparadas tinha.

De novo, ter aqui significa possuir e o particípio, um estado: "Ele tinha embarcações preparadas", "Ele tinha navios (que haviam sido) preparados".

A expressão do passado, ou seja, das ações já realizadas era feita, no latim clássico, com formas verbais simples (um único verbo). Ao longo da Idade Média, os latinistas passaram a usar a estrutura "verbo habere + particípio" para registrar uma ação. Uma frase como habeo litteras scriptas implicava, portanto, "eu escrevi uma carta" e não mais "eu tenho uma carta (que foi) escrita".

É nesses termos, e com esse sentido, que o tempo composto se manifesta no francês antigo durante esses mesmos séculos: j'ai lettres escrites (eu escrevi cartas). Ou seja, as línguas românicas se desenvolveram com elementos do latim tardio, aproximaram o particípio do auxiliar e fundaram um bloco verbal consolidado – o passado composto: j'ai écrit des lettres.

Isso explica a parte do passé composé que se conjuga com avoir, mas falta a outra, com o être. A voz passiva tem uma forma simples no latim clássico, que o latim tardio substituiu em favor da forma composta com o auxiliar essere:

Litterae scribuntur Litterae sunt scriptae (em ambas, "as cartas são escritas").

É daí que o être, do francês, herda a função de auxiliar do passé composé, mas apenas para o punhado de verbos que instituem uma espécie de estado particular ao corpo que o executa: je suis entrée (eu entrei), ils sont venus (eles vieram).

Pode parecer estranha aos lusófonos a ideia de que, ao chegar em casa, uma mulher "está chegada" (elle est arrivée) e que "está subida" pela escada (elle est montée). Talvez as noções de nascimento e morte facilitem a assimilação de ações que se confundem com estados de existência do sujeito:

Je suis née (Eu sou nascida → Eu nasci)
Ils sont morts (Eles são/estão mortos → Eles morreram)

Basta ampliar um pouco a lógica e conceder a outros poucos verbos que, dentre 8 mil, foram selecionados pelo idioma para preservar os resquícios de uma vocação ancestral, a do particípio que participa tanto da ação quanto da adjetivação dentro de uma sentença: aller, arriver, partir, entrer, sortir, rester, passer, venir, tomber, monter, descendre, tourner.

Quando eu aprendi o passé composé, a professora comentou que é um tempo verbal para contar o passado com os pés fincados no presente. Naquele momento, não pude entender bem o que ela queria dizer, mas agora percebo que era seu jeito de ressaltar a linhagem à qual essa conjugação pertence. Ainda que o sentido da combinação "verbo auxiliar + particípio" tenha sido transformado ao longo de muitos séculos, a estrutura resiste, como as colunas de uma ruína.

Não só isso. A professora também intencionava nos fazer entender a diferença entre passé composé (j'ai écrit, il a aimé) e passé simple (j'écrivis, il aima). O passé simple, ensinado nos cursos de FLE como um passado histórico e/ou literário, carrega uma ruptura intransponível com o presente da enunciação. Ele tem diferenças com o composé que nos escapam – a nós, falantes do português e usuários de um econômico pretérito perfeito (eu escrevi, ele amou). A princípio, no francês antigo, essa distinção não era tão clara, como se vê nestes versos de Aucassin et Nicolette, romance-cântico escrito entre o fim do século XII e o começo do XIII:

Vers le palés est alés : (Il s'est dirigé vers le palais)
Il en monta les degrés. (il en monta les marches)
En une cambre est entrés. (Il est entré dans une chambre)
Si comença a plorer. (et se mit à pleurer.)


– autor desconhecido
Ilustração de 1903 por Lucien Pissarro para a edição de C'est d'Aucassin et de Nicolette

Contudo, a (suposta) equivalência entre os dois passados não durou. Os esforços de gramáticos e escritores nos séculos seguintes distinguiram inequivocamente o passé simple do passé composé, consagrando o primeiro aos relatos grandiosos, dignos da posteridade. Toda a literatura clássica francesa, de Rabelais a Proust, assim como o teatro e a filosofia, se fundou na gama de tempos verbais eruditos. O segundo foi relegado à oralidade (ou à escrita de fatos cotidianos e recentes). A História e as histórias, cada dimensão tinha seu registro verbal próprio e uma relação própria com o sujeito enunciador.

Isso, claro, até que Camus reconfigura a tradição literária em 1942, com um incipit assombroso:

Aujourd'hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas.
– Albert Camus, L'Étranger

O engenho de Camus foi narrar seu romance praticamente inteiro no passé composé de modo a lhe conferir uma formatação ilusoriamente leviana, realista, crua. O registro gramatical/linguístico revela uma escolha estética que, enfim, compete a um tratado filosófico que cultiva grandes temas como a morte, a violência, a (in)justiça e a transcendência no mesmo solo dos eventos banais de um domingo. Desde então, o registro do passado na literatura francófona ganhou novas camadas e possibilidades.

Como eu disse, nos escapam essas nuances. Em português, Aucassin chorou e a mãe de Meursault morreu, qualquer tenha sido a conjugação empregada em francês. Escapam o uso do particípio e as concordâncias, porque os caminhos do português foram outros e nos habituaram a formas próprias de expressar e perceber as coisas do mundo. Em aquisição de língua estrangeira, as dificuldades geralmente aparecem quando nossa intuição de falante nativo é desafiada em seus fundamentos. Elas são brechas na imensa estrutura da gramática internalizada que nos deixam entrever as ruínas sobre as quais novas línguas se erigiram.

As dificuldades também criam pontos de tensão. Gramáticos e linguistas francófonos, de tempos em tempos, reivindicam uma modernização do francês e simplificação de suas regras de concordância do particípio (que eu preferi não abordar nesta newsletter). A disputa entre conservadores e reformistas é intensa e, só nos últimos anos, o debate foi retomado na Bélgica e no Québec. Até agora, a Académie Française conseguiu manter as regras vigentes, que datam de mais de 300 anos. Mas a língua não tem pressa, ela contém todo o tempo.