Escreva em todo lugar
Em maio de 1968, a França vivia um de seus momentos mais intensos do século XX: a efervescência de uma revolta social impulsionada por insatisfações de estudantes, operários, feministas, profissionais liberais e intelectuais. As causas e consequências desse movimento são variadas e não cabem numa newsletter como esta, ainda que valha sublinhar que houve importantes avanços sociais e conquistas políticas – no aniversário de 50 anos do evento, quase 80% dos franceses consideravam que sua herança é positiva.
A própria militância, em suas táticas, estética e linguagem, permanece, até hoje, sob influência do fenômeno soixante-huitard. Nos muros das grandes cidades, pichações e cartazes exibiam desenhos, ícones, slogans, versos, frases, citações, palavras de ordem e trocadilhos que se inscreveram definitivamente no repertório da língua francesa (e até no de outros idiomas, como é o caso de "il est interdit d'interdire", ou seja, "é proibido proibir"). Elaborados em ateliês populares e confeccionados por artistas e arquitetos, os cartazes de Maio de 68 criticavam especialmente o capitalismo, as condições de vida e trabalho, a violência política/policial. A veemência linguística e gráfica dessas peças sempre me manteve na órbita do movimento, fascinada e entretida.
Seja por força de repetição, seja por um certo cinismo, hoje esse corpus pode nos parecer ultrapassado ou mesmo ingênuo. Tente, contudo, avaliar o empuxo provocativo de frases como "sous le pavé, la plage" ("sob os paralelepípedos, a praia"), "l'imagination au pouvoir" ("a imaginação no poder") ou "la beauté est dans la rue" ("a beleza está na rua"), que evocam uma dimensão poética do movimento em pleno curso de reivindicações concretas na política e na economia. Outro exemplo: a expressão "métro, boulot, dodo" ("metrô, trampo, naninha"), utilizada, atualmente, com resignação e sarcasmo, para resumir o estilo de vida na outrora vibrante Paris, foi sacada em 1968 de um poema que criticava a monotonia e ausência de perspectivas da classe operária.
Au déboulé garçon pointe ton numéro
Pour gagner ainsi le salaire
D’un morne jour utilitaire
Métro, boulot, bistro, mégots, dodo, zéro.
– Pierre Béarn, em Couleurs d'usine (1951)
Desde então, toda manifestação popular resgata alguns desses slogans, o que atesta sua perenidade mas, também, o apego da juventude às fórmulas e símbolos de protesto já estabelecidos.
No entanto, na campanha das eleições legislativas que se encerram hoje, na França, o espírito revoltado se reapresentou em novos termos. Engajados em barrar o avanço da extrema direita na composição da Assembleia, os eleitores dessa coalizão antifascista, chamada de Nouveau Front Populaire (em referência explícita ao movimento político que se opôs aos nazistas nos anos 1930-40) criaram e publicaram seus próprios cartazes, vários deles com palavras, referências e arranjos inéditos.
Nos cartazes de 2024, a complexidade das identidades de gênero, a ecologia, o veganismo, o anti-racismo e a diversidade étnica da França dão às peças um ar atualizado, vivo e fresco. Esses novos anseios e novos valores vêm se somar a um fundo aspiracional antigo: liberdade, igualdade, equidade.
Se os temas, as demandas e a plataforma de divulgação se adequam ao nosso tempo, não seria diferente com a linguagem. Os cartazes, a despeito da gravidade da disputa travada, se servem de um visual colorido, mais bem-humorado do que humorístico. Numa pegada de arte pop, prestam homenagens a figuras históricas da esquerda francesa e mundial, assumem um tom de marketing político. Na seleção abaixo, os cartazes fazem trocadilhos com os nomes de Léon Blum (coração faz bum); Karl Marx (ça marche/isso funciona); a famosa canção "Le temps des cerises" (des crises); Jean Jaurès (se eu soubesse, teria vindo).
Convido você a pesquisar essas referências e descobrir por que eles compõem o panteão popular da esquerda; a mim basta dizer que, ao citá-los, essa geração presta contas àqueles que ajudaram a formatar a República e estabeleceram alguns dos valores que se deseja, agora mais do que nunca, proteger.
Os trocadilhos e os jogos de palavras, um traço fundamental da cultura francófona, reinam absolutos nesses cartazes – o que eu, pessoalmente, acho um deleite. Aqui, por exemplo, "vous ne trouvez pas qu'il facho" brinca com o som de fait chaud (faz calor) e facho (fascista); a cantiga "un peu, beaucoup, à la folie, pas du tout" ("um pouco, muito, loucamente" correlato do nosso "bem-me-quer, mal-me-quer") vira "un peuple beaucoup à la folie". A expressão "être fait l'un pour l'autre" (ser feito um para o outro) vira "extrême droite, on est fait loin pour l'autre" ("nós somos feitos para ficar longe um do outro"). A fonética também explica a frase "si on peut le faire, nous le front/ferons" ("se nós podemos fazê-lo, nós a frente/o faremos").
Meu preferido entre os cartazes para o Nouveau Front Populaire é este que traz a sombra de Marine Le Pen e a frase "l'union contre vents et Marine", numa referência à expressão "contre vents et marées" ("contra ventos e marés", no sentido de "contra todas as adversidades"). Gosto da tensão do reconhecimento da ameaça, pois há de fato perigo no projeto que Marine Le Pen encampa, e a descontração que o trocadilho permite.
A língua também é um elemento em disputa (os nacionalistas a reivindicam como um de seus patrimônios culturais), ela é tanto veneno quanto antídoto: aqui, a inventividade quebra a rigidez da expressão idiomática, o gracejo quebra o temor, a união da frente popular enfrenta a turbulência da extrema direita.
É difícil, ao explicar essas mensagens, conservar as peripécias linguísticas ou o impacto da concisão, que são sua maior virtude. Minha intenção é, antes, mostrar como os franceses tiraram proveito das particularidades do seu idioma, num momento que consideram crítico, para refundar a comunicação da militância antifascista nas redes sociais, tentar dar o tom, imbuir-se de forças, reivindicar o passado, traduzir o presente.