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Francês de verdade

Persiste, aqui e ali, o discurso de uma língua "de verdade" a ser apreendida.
Francês de verdade

Gosto daquela música da Amélia, a "mulher de verdade", uma agonia chorosa de um sujeito tão atordoado com as exigências e ambições da amante que idealiza seu avesso. Amélia está na contramão das fantasias, que costumam almejar a exuberância e a fartura que nos faltam no cotidiano. Extremamente simples, ela é uma mulher sem vaidade, sem fome, sem caprichos, sem pragas nem esperanças diante dos céus e da terra. A "mulher de verdade" é a pessoa menos real da qual já se ouviu falar.

Não faz muito tempo, vi o vídeo de uma francesa aconselhando seus seguidores a trocarem salut por coucou porque, segundo ela, salut virou coisa de turista. Na mesma rede, um jovem britânico em intercâmbio em Paris postava vídeos lastimando o contraste entre o francês que aprendeu e o francês que ouviu lá. Esses dois falantes, em polos opostos do desempenho linguístico, têm em comum a ancoragem em um idioma supostamente autêntico, essencial, o "francês de verdade".

A questão toda é o "de verdade". Esse epíteto costuma sinalizar uma projeção obviamente limitada e limitante, longe de qualquer essência, posto que a essência lhe escapa. Taí o meu gancho: persiste, aqui e ali, o discurso de uma língua "de verdade" a ser apreendida. Uma fantasia que revela, senão a melancolia do apaixonado impotente, o pragmatismo da reserva de mercado.

A língua existe sempre em contexto e a comunicação não pode ser apartada das circunstâncias nas quais os falantes a exercem. O português ensinado na escola é bastante focado na sua versão normativa, submetida a análises morfossintáticas, visando o aprimoramento de habilidades de escrita e leitura. Ninguém espera (nem aceitaria) que a professora interfira no sotaque da garotada em sua língua materna. Tampouco que ela trabalhe para que traços da identidade cultural e linguística deles sejam preteridos por outros. Quero dizer, sabe-se que mesmo que um falante nativo não domine completamente uma determinada variante do português, isso não significa que ele não fala português "de verdade". Aplicar esse conceito à nossa língua materna ajuda a dimensionar sua fragilidade, assim como a perceber os desafios inerentes à aquisição de uma língua estrangeira.

Pergunte-se qual recorte do português você ensinaria como "português de verdade" caso um gringo demonstrasse interesse em aprendê-lo. O português de Portugal? Do Brasil? De qual estado? Da capital Brasília? Dos centros urbanos? Da periferia? Do Jornal Nacional? O português do funk ou o do feminejo? Para um roteiro gastronômico no Pará ou reunião de negócios em São Paulo? Para conhecer o carnaval dos blocos de rua ou a Caatinga? Para ler Guimarães Rosa ou assistir às novelas do Maneco? Não pense apenas na pronúncia, considere também o vocabulário, as expressões, o grau de formalidade, as construções das frases, o universo cultural. Você lhe sugeriria a saudação bom dia ou e aí, beleza? Não perca de vista tudo o que fica de fora do quadro cada vez que ele centraliza algo. Muito está em jogo quando um idioma é apresentado a um aprendiz estrangeiro e qualquer recorte que se pretenda definitivo ou essencial está, na melhor das hipóteses, padecendo de auto-engano.

Munidos de suas próprias escolhas e limitações (de naturezas diversas, inclusive políticas), pedagogos, linguistas e professores elaboram métodos e cursos tentando apresentar uma versão abrangente, uma face conhecida e reconhecível do idioma, para um grupo inabarcável, constituído apenas dessa ideia de alteridade: estrangeiros. A partir disso, cabe ao aluno preencher as próprias lacunas com o universo de elementos disponíveis. Melhor até: cabe ao aluno fabricar essas lacunas, descobrindo, durante seu processo de aprendizagem e segundo seus interesses, os usos que ele deseja dar àquela língua – então a forma virá na esteira da função.

Nos meus primeiros anos de estudo, eu achava que as aulas de francês eram uma espécie de treino para as experiências reais com o idioma, para quando eu estivesse "em situação de francês de verdade". Ao longo dos encontros com falantes nativos e não-nativos na França e fora dela, percebi que essa situação era difícil de reconhecer e, sobretudo, de hierarquizar. (Do ponto de vista linguístico, ler Madame Bovary é mais ou menos essencial do que namorar um francófono nativo?)

Mas apenas depois de alguns anos lecionando é que eu entendi que aulas de FLE, além de uma preparação para objetivos bem específicos (uma viagem de férias, uma pós-graduação, uma prova, uma entrevista de emprego, uma mudança...), são relances de "francês de verdade" por si só, desde o primeiro salut. Em interlocução com os alunos, apresento recortes do idioma e exploro, com eles, maneiras de se expressar. Através de documentos sonoros, textuais, visuais, exercícios, de questões programadas e papos espontâneos, nós usamos a língua francesa para decifrar a língua francesa, fazemos dela nossos instrumento e objeto ao mesmo tempo. Estudamos a francofonia exercendo um papel nela, ocupando um lugar adquirido em cada ato de produção e compreensão.

Gírias, verlan, pronúncias menos "escolares" são parte de uma das possibilidades da língua, nem mais nem menos. E a beleza é poder transitar entre os registros de um idioma, passar do courant ao familier e incorporar expressões que te cativam; é tão legítimo quanto um estrangeiro que chama algum safado de um-sete-um com a indignação debochada que nos é tão característica. A imersão linguística proporciona de forma intensa (e inescapável, não dá para pôr legenda na mesa do bar) o que funciona melhor: contexto, referências, interlocução, apropriação.

Meu conselho para evitar o tipo de frustração que aquele rapaz britânico sentiu é não esperar que haja uma transição imediata e total entre diferentes situações de comunicação (aula de FLE → rua de país francófono), pois não há. O que há é um repertório cada vez maior, mais complexo e em constante (re)arranjo interno. A aquisição de um idioma dura enquanto você se expuser à pluralidade da comunicação humana. Tudo o que você aprendeu, inclusive o que você acha que aprendeu mal ou esqueceu, serve de alicerce para coisas novas, que serão usadas e tornadas suas, todas reais.