Notas sobre zumbis

Dois dias depois de escrever minha última newsletter, entre o Natal e o Ano Novo, meu avô morreu repentinamente. Na verdade, repentinamente é uma palavra imprecisa para alguém que tinha 95 anos e problemas crônicos de saúde. Ainda assim, fomos pegos de surpresa, traídos no acordo tácito com o universo que estipula a suspensão dos dramas extraordinários durante as festas de fim de ano.
A maior ofensa que a vida pode fazer à morte é seguir seu curso, empilhando as obrigações e compromissos, indiferente ao coração partido e ao tempo não-linear do luto. Eu não pude sacrificar quase nada na esteira dessa perda difícil, mantive todas as pequenas ações que determinam o ritmo do cotidiano: trabalho, exercícios, refeições, assembleias de condomínio, conversas pelo whatsapp, sorrisos de cordialidade, passeios e distrações. Tudo, menos a newsletter, esse espaço que eu inventei para dizer algo sobre a francofonia e o ensino de FLE, que é uma extensão da minha vida e dos meus interesses. Pensei durante meses em como retomar esse hábito. O que é possível escrever que acate o imperativo da vida sem ignorar o da morte?
A única resposta que eu encontrei, acredite você, foi: zumbis.

A maioria de nós descobriu a figura dos zumbis através da cultura pop. São inúmeros filmes, quadrinhos, jogos de vídeo game, séries de tv etc. dedicados a narrar a possibilidade de um retorno dos mortos. O Apocalipse, que já é uma predição bastante assustadora se você conhece o texto bíblico, ganha tons extremos de horror. No apocalipse zumbi, os mortos não apenas se levantam de seu sono eterno, eles se insurgem contra os vivos, agem com violência, não têm memória nem laços afetivos, vagam pelo mundo tomados de fúria e fome insaciáveis. O Apocalipse é o fim necessário da humanidade, é a conclusão, e portanto o sucesso, do projeto divino para suas criaturas: é hora de identificar quem foi tocado pela palavra sagrada, quem é digno de entrar no reino dos céus. O apocalipse zumbi parece mais uma catástrofe: por descuido, ambição ou mero erro, os vivos produzem condições nas quais a morte é profanada e os mortos se tornam agentes de caos e destruição, reduzindo novamente a humanidade ao impulso de sobrevivência e autoproteção. As histórias de apocalipse zumbi relatam sempre o fracasso do projeto civilizatório.
Acontece que, em sua origem, o zumbi não estava destinado a tanto. A começar, ele não pertencia ao universo ficcional, tão livre e fértil em suas possibilidades. Os mortos-vivos são um elemento da realidade, e a seus limites estão sujeitos. No Haiti, o zumbi era o réu de um sistema de justiça popular e paralelo; alguém que, por suas diversas razões, se envolveu num conflito e não pôde chegar a um acordo de apaziguamento. A condição de morto-vivo se produz num ritual vudu – ao condenado dão substâncias neurotóxicas que amortecerão seus sentidos, conduzindo a um estado de semi-consciência. Essa pessoa passa por seu próprio funeral, é enterrada e desenterrada dias depois, quando então recebe um novo nome e um novo destino. Sua vida pregressa, seus familiares, amigos e vizinhos, seu trabalho, casa e rotina, nada disso poderá ser recuperado. O morto-vivo passa por um processo de ruptura social, é um pária que, frequentemente, torna-se escravo do feiticeiro que conduziu sua passagem. Em muitos aspectos, a condição de morto-vivo é pior do que a própria morte, mas não é nada que possa ser transmitido como uma infecção.

Artistas haitianos trataram de registrar suas versões dos zumbis. Na literatura, Frankétienne publicou Dézafi (1975), em créole, e depois a versão em francês Les affres d'un défi (1979) para contar uma história cheia de reviravoltas e intensidade. Esse excerto, apavorante e comovente, descreve as sensações de um corpo zumbificado:
Dòmi lévé gadé maché manjé lanbé taté souflé tonbé kouri ralé jounin grangou. Palé déplaé. Lang lou. Lang koupé miyèt-moso. Vant plin. Trip kodè. Souaf dlo. Abiyé banda. Kouché mòksis. Lévé kontan. Griyin dan. Pronminnin toutouni. Vlopé lan ranyon. Gayé nan lanmou. Anfourayé nan lanmò. Kilès pami nou k-ap viv toutbon? Kilès? – Frankétienne, Dézafi (1965)
Dormir avec l’espoir que la lumière drainera nos angoisses nocturnes. Se réveiller loin des songes désentravés, le corps enlépré de solitude. Regarder l’immensité des déserts inarpentés. Errer à travers la meublerie des désirs. Remuer le ciel et la terre jusqu’au saignement des étoiles et des pierres. S’empiffrer de nourriture. Lécher d’appétit. Palper avec prudence. Souffler sur des morceaux brûlants. Choir/déchoir. Fuir à toutes jambes. Crever de faim des jours entiers. Parler sans cesse. Déraisonner. Avoir la langue engourdie ou cisaillée en mille morceaux. Être repu. Avoir les tripes encordées par la douleur. Éprouver une soif d'enfer. Se parer comme un paon. Se coucher de mauvaise humeur. Se lever en pleine euphorie. Rire à pleines dents. Marcher tout nu ou recouvert de haillons. Se fourvoyer dans de folles amours. S'enliser dans la mort. Mais qui parmi nous vit réellement ? Vraiment, qui ? – Frankétienne, Les affres d'un défi (1969)
Dormir com a esperança de que a luz drenará nossas angústias noturnas. Acordar longe dos sonhos desenfreados, o corpo empesteado de solidão. Contemplar a imensidão dos desertos nunca percorridos. Vagar pela mobília dos desejos. Remexer céu e terra até que sangrem as estrelas e as pedras. Empanturrar-se de comida. Lamber com apetite. Tocar com prudência. Assoprar pedaços ainda em brasa. Cair / decair. Fugir a toda velocidade. Morrer de fome por dias seguidos. Falar sem parar. Delirar. Ter a língua dormente ou cortada em mil pedaços. Estar farto. Ter as tripas enredadas pela dor. Sentir uma sede infernal. Enfeitar-se como um pavão. Ir dormir de mau humor. Levantar-se em plena euforia. Rir a plenos dentes. Andar nu ou coberto de trapos. Perder-se em amores loucos. Afundar-se na morte. Mas quem entre nós vive realmente? Sinceramente, quem? (tradução minha)

Outro exemplo é o poema Cap'tain zombi (1967), de René Depestre. Como em Dézafi, o zumbi tem o dom raro da fala – portanto, da consciência – e se expressa diretamente aos seus interlocutores. O tom denunciatório corresponde ao manuseio que Depestre faz do conceito de morto-vivo. Em sua obra, a zumbificação é um processo coletivo, uma agonia brutal à qual a população do Haiti está condenada por causa do colonialismo e da escravidão. O clamor pela liberdade funciona na dimensão fantástica tanto quanto na política:

A arte haitiana nunca foi ingênua em relação à percepção ocidental de seus ritos e, por isso, o zumbi, quando inserido numa narrativa, instrumentaliza algo sempre maior do que nossa mera curiosidade mórbida. Se não políticos, os zumbis são alegorias metafísicas numa estética tropical. É o que faz Wilson Bigaud em seus quadros carregados de cores vivas e luz, algo contra-intuitivo para cemitérios e espectros fantasmagóricos. As festas e os velórios, a euforia e o horror, o medo e o fascínio se confundem, vivos e mortos-vivos se tornam espelhos uns dos outros.

Desse acervo, minha obra preferida é Pays sans chapeau (1996), de Danny Laferrière. Metalinguística, algo meta-antropológica e meio-biográfica, Laferrière fabula seu retorno à terra natal depois de um exílio de 20 anos no Quebec. O protagonista redescobre o Haiti, seus cidadãos, seus hábitos e ritmos, sua família e amigos, seu antigo amor. A vertigem do tempo e da vida abortada, a que não foi vivida, a pobreza e a precariedade, tudo isso corresponde aos capítulos "pays réel" (país real). A investigação dos mortos-vivos, a recusa de uma cabeça ocidentalizada ao que lhe parece, agora, folclore e ignorância, se desenrola nos capítulos chamados "pays rêvé" (país sonhado). Nosso herói procura explicações para a existência do mito, busca o significado. Quer a chave que decifra o enigma, mas apenas porque o trata como farsa: os mortos-vivos são fruto de experimentos militares dos Estados Unidos? São gente pobre e faminta? Criminosos? Vítimas? São agentes de moralização? Buscam vingança, buscam esquecer? Há todo tipo de hipótese. Seus conterrâneos, gaiatos, lhe dão tantas explicações quantas sua racionalidade ocidental permite, mas nenhuma basta.
A resposta, para se revelar, exige primeiro que você abdique de procurá-la. O assombro não é que zumbis existam, mas que existam entre os vivos, capazes de se misturar na multidão – Afinal, quem entre nós vive realmente? – e dissolver a fronteira entre vida e morte. Se você pensar na banalidade que é morrer e simplesmente continuar perambulando por aí, cumprimentando seus vizinhos, coçando a cabeça de um cachorro de rua, o mistério cede lugar a uma espécie de compaixão. Sem transcendência, a morte é mais simples e a distância até ela é curta, curtíssima. Eles apenas estão entre nós. Nós estaremos, também.
O país sem chapéu é o nome do mundo dos mortos, assim chamado porque os defuntos são enterrados sem o adereço – então lá ninguém entra usando chapéu. O corolário disso é que os mortos vivem como os vivos vivem, experimentam do aroma do café às paixões mais dilacerantes, pois tudo compõe o repertório dos sentidos e do propósito dos homens. Uma injustiça que a cultura pop fez com os mortos-vivos é deduzi-los da conta dos humanos. Uma vez transformado, destituído de consciência e de linguagem, o zumbi deixa de pertencer à sua própria espécie, vira outra coisa. Fortalezas devem ser construídas, armas devem ser empunhadas, pois o zumbi é incapaz de experimentar qualquer beleza, de ansiar qualquer comunicação. Vamos restituir a verdade: os zumbis são a zona de intersecção entre as dimensões da existência. Eles lembram e sentem mais, e não menos, o que nos constitui. São um paradoxo de presença e ausência que somente a arte, a memória e o rito podem produzir e equacionar.
Quand le poète dit que l’homme se souvient des cieux, ce n’est pas une parole en l’air, il veut dire que si nous construisons des maisons ici, c’est parce qu’il y a des maisons là-bas d’où il vient, que si nous offrons des fleurs aux gens que nous aimons, ce n’est pas par hasard, c’est parce que c’est ainsi qu’on fait là-bas, que si nous écrivons, si nous faisons l’amour, si nous sommes jaloux, ou si nous encombrons notre maison de bibelots, c’est toujours parce c’est comme ça qu’on vit là-bas. Donc, cher ami, Shakespeare imite les dieux parce qu’il se souvient mieux que les autres hommes de la vie qu’on mène là-bas… – Danny Laferrière, Pays sans chapeau (1996).
Quando o poeta diz que o homem se lembra dos céus, essas não são palavras ao vento — ele quer dizer que, se construímos casas aqui, é porque há casas lá de onde viemos; que, se oferecemos flores às pessoas que amamos, não é por acaso, é porque é assim que se faz lá; que, se escrevemos, se fazemos amor, se sentimos ciúmes ou se entulhamos nossa casa de bibelôs, é sempre porque é assim que se vive lá. Portanto, caro amigo, Shakespeare imita os deuses porque ele se lembra, melhor do que os outros homens, da vida que se leva lá...
Cada um se consola como pode da mortalidade daqueles que amamos, e sobretudo da nossa. Claudicante, eu encontro um pouco de conforto nessa comunhão, nessa educação para a morte. Era, aliás, o que meu avô fazia em cada brinde com uma dose de rabo-de-galo, em cada refeição, de segunda a segunda. Ver a morte na vida e a vida na morte, viver ambas, ora cá e depois lá.