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Um pedido à deusa Strena

A última newsletter de 2024 é natalina.
Um pedido à deusa Strena
Ilustração de Alain Gauthier

Em cada presente, grande ou pequeno, oferecido nesta época de fim de ano, ressoa um eco longínquo saído diretamente de uma antiga floresta romana. Lá, no coração de um bosque sagrado, a deusa Estrênua (ou Estrênia, do latim Strena) fazia sua vigília em meio aos ramos de verbena que os romanos iam colher no 1º de janeiro. Em homenagem a essa deusa – a patrona da saúde, da força, do trabalho –, e em busca de bons augúrios para o novo ano, as pessoas ofereciam umas às outras frutas, mel, ervas, às vezes moedas.

No acervo da língua francesa há uma palavra, étrenne, que vem diretamente do nome da deusa Strena e que designou, desde pelo menos o século XII e até o XIX, o nome da prenda dada no começo do ano como gesto de estima ou dever. Dadas a nobres em tempos de monarquia, a patrões e agentes públicos no regime republicano, a amigos e familiares nos círculos privados, as étrennes permanecem, atualmente, como gratificação concedida aos trabalhadores das classes populares (lixeiros, bombeiros, carteiros, porteiros, faxineiros...) – no Brasil, nós chamamos de caixinha.

Se nós temos o costume de trocar presentes natalinos com nossos queridos, é porque herdamos as mesmas práticas que geraram, num contexto trabalhista, as étrennes e as caixinhas. Na verdade, todo o aparato simbólico associado aos presentes – o caráter familiar e sentimental da festa, a árvore, a criança e o papai Noel – é fruto de inúmeros (e recentes) processos de assimilação, recomposição e invenção que, aos poucos, moldaram o Natal tal como nós o concebemos.

Do paganismo ao shopping

Diversas religiões pagãs chegaram, por seus próprios caminhos, a rituais ligados ao solstício de inverno (que acontece, no hemisfério norte, por volta de 21 de dezembro). Na dureza dos dias mais frios e escuros do ano, as festas e oferendas eram um apelo atávico e coletivo à abundância. O cristianismo se serviu de uma relação já existente entre certas comunidades europeias e os ciclos da natureza para fixar, ali, uma de suas datas canônicas.

A celebração do nascimento de Jesus nem foi formatado para ser o principal evento cristão, aliás, considerando que a apoteose da divindade de Cristo é sua ressurreição. Ainda assim, é o Natal, e não a Páscoa, que mobiliza e cativa mais profundamente a comunidade cristã no mundo todo. A antropóloga Martyne Perrot escreveu um livro para explicar o fenômeno e, em suma, argumenta que essa é uma festa que teve suas origens no paganismo, passou por uma intensa apropriação institucional religiosa, mas que foi conduzida a uma espécie de profanidade graças à ascensão da burguesia, ao frenesi do consumismo e ao folclore em torno do Papai Noel.

Cartaz da loja Voltaire, de Jules Chéret

Na Europa do século XIX, notadamente na Alemanha, na Inglaterra e na França, instaurou-se um mundo burguês e conservador que valoriza a vida privada e protege a intimidade familiar. Assim, o Natal saiu parcialmente da esfera da liturgia e se viu transformado em "uma grande festa de família que se apoia na afirmação desses valores e na vontade de celebrá-los a cada ano, reunindo as gerações em torno de seus filhos e netos" (Parrot). A partir de então, o centro de gravidade da vida social é a família e, no núcleo dela, está a criança.

Ainda no século XIX, os mercados dos grandes centros urbanos potencializaram as étrennes de fim de ano para fundar uma prática comercial, com forte investimento em marketing (cartazes, catálogos, vitrines decoradas) e novos produtos (roupas, objetos de arte, papelaria fina, quinquilharias de inspiração científica e, sobretudo, brinquedos).

Cartaz da loja Pygmalion, 1899

Por que um Papai Noel?

As engrenagens objetivas e subjetivas do consumo fizeram o resto. Na segunda metade do século XX, a ideia de um presente de Natal já estava devidamente estabelecida e dissociada daquele gesto simpático e modesto de prenda de fim de ano. O presente de Natal tem vida própria, propósito, mensagem, cores, papel de embalagem temático. Ele opera entre a recompensa por um bom comportamento e o direito da criança ao afeto e à fantasia. Em muito, a importância do presente de Natal deve-se ao roteiro fantástico que pais e avós encampam para sua entrega. E aí entra o Papai Noel (pela chaminé).

Na verdade, desde o século XVI, há registros de histórias de seres imaginários que mediavam a entrega das étrennes às crianças, quando elas as ganhavam. Os detalhes de cada história variavam de acordo com o caldo cultural em que eram contadas e recontadas. Esses mediadores das prendas de fim de ano poderiam ser personagens saídos do acervo bíblico ou do folclore, santos ou fadas, porém alguns elementos reincidem: a velhice, a capacidade de viajar atravessando o céu, um animal que auxilia a locomoção (rena, asno, cavalo alado), a aparição noturna.

O caminho que o moderno Papai Noel percorreu para sintetizar e se sobrepor a todos os doadores de presentes que o antecederam não é muito linear, e sugiro o Histoire du père Noël, da Nadine Cretin, para descobrir mais. O que talvez seja inédito nesse bom velhinho é que ele se tornou, nos nossos tempos, a chave de uma iniciação. Há um grau de entrega à ilusão de que apenas as crianças são capazes; crescer frequentemente leva a criança a desvendar a farsa do Papai Noel e, ato contínuo, ser instada a participar dela para proteção não apenas de irmãos e primos menores, mas do segredo em si. No limite, nos conduzimos, mesmo na vida adulta, à suspensão do cinismo para garantir às crianças sua própria infância.

La croyance où nous gardons nos enfants que leurs jouets viennent de l’au-delà apporte un alibi au secret mouvement qui nous incite, en fait, à les offrir à l’au-delà sous prétexte de les donner aux enfants. Par ce moyen, les cadeaux de Noël restent un sacrifice véritable à la douceur de vivre, laquelle consiste d’abord à ne pas mourir.
– Claude Lévi-Strauss, Le père Noël supplicié (1952)

A crença na qual mantemos nossas crianças, de que seus brinquedos vêm do além, serve de álibi ao movimento secreto que nos leva, na verdade, a oferecê-los ao além sob o pretexto de dá-los às crianças. Por esse meio, os presentes de Natal permanecem um verdadeiro sacrifício à doçura de viver, que consiste, antes de tudo, em não morrer.
Cartaz de Leonetto Cappiello para a loja do Louvre, 1922

Um conto natalino meio queer

Minha intenção, quando me dispus a escrever uma newsletter natalina, era apresentar a vocês o conto "La mère Noël", de Michel Tournier, publicado em 1978. Fiz uma tradução livre, o original está aqui:

Será que o vilarejo de Pouldreuzic encontraria um período de paz? Há muito tempo, ele estava dividido pela oposição dos clérigos e dos radicais, da Escola Livre dos Frades e da comunidade laica, do padre e do professor. As hostilidades, que emprestavam as cores das estações, ganhavam contornos lendários com as festas de fim de ano. A Missa do Galo acontecia, por razões práticas, no dia 24 de dezembro às seis da tarde. No mesmo horário, o professor, fantasiado de Papai Noel, distribuía presentes aos alunos da escola laica. Assim, o Papai Noel se tornava, por seus próprios meios, um herói pagão, radical e anticlerical, e o padre lhe confrontava com o Menino Jesus de seu presépio vivo – famoso em toda região – como quem lança um jato de água benta na cara do Diabo.

Sim, Pouldreuzic encontraria uma trégua? Pois o professor, ao se aposentar, foi substituído por uma professora de fora, e todo mundo a observava para saber para qual santo ela acendia vela. Senhora Oiselin, mãe de dois filhos – um deles um bebê de três meses – era divorciada, o que parecia uma garantia de fidelidade aos valores laicos. Mas o partido clerical triunfou já no primeiro domingo, quando se viu a nova professora fazer uma entrada notável na igreja.

A bola parecia cantada. Não haveria mais árvore de Natal sacrílega na hora da Missa do Galo, e o padre permaneceria o único senhor do terreno. Por isso, a surpresa foi grande quando a senhora Oiselin anunciou que nada seria mudado na tradição, e que o Papai Noel distribuiria seus presentes no horário habitual. Que jogo ela estava jogando? O carteiro e o guarda florestal, em quem todo mundo pensava por conta de suas opiniões socialistas, afirmavam não saber de nada. O espanto foi maior quando se soube que a senhora Oiselin emprestaria seu bebê ao padre para o papel de Menino Jesus no presépio vivo.

No começo tudo ia bem; o pequeno Oiselin dormia como uma pedra quando os fiéis desfilaram na frente do presépio, os olhos aguçados pela curiosidade. O boi e o asno – um boi de verdade, um asno de verdade – pareciam enternecidos diante do bebê laico tão milagrosamente metamorfoseado em Salvador
.

Infelizmente, ele começou a se agitar bem no Evangelho, e seus gritos irromperam no momento em que o padre ia subir ao púlpito. Nunca se tinha escutado uma voz de bebê tão estrondosa. Em vão, a menina que fazia o papel da Virgem Maria tentou embalá-lo contra seu peito magro. O pequeno, vermelho de raiva, esperneando com os braços e as pernas, enchia as abóbadas da igreja com seus gritos furiosos, e o padre não conseguia pronunciar uma palavra.

Finalmente, ele chamou uma das crianças do coral e lhe transmitiu uma ordem no ouvido. Sem tirar a sobrepeliz, o jovem saiu, e ouviu-se o barulho de suas galochas diminuindo do lado de fora.

Alguns minutos depois, a metade clerical do vilarejo, completamente reunida na nave, presenciou uma visão inédita que ficaria para sempre gravada na lenda dourada da região de Bigouden. Viram o próprio Papai Noel invadir a igreja. Ele caminhou a passos largos em direção ao presépio. Então, afastou sua grande barba de algodão branco, desabotoou sua veste vermelha e ofereceu um seio generoso ao Menino Jesus, que subitamente se acalmou.

Essa é uma especialidade do autor, compor bricolagens de enredos, cenários e personagens tradicionais (de diversas, diversas fontes) com um senso de humor provocativo e benévolo. Tournier escreveu para adultos e crianças, algumas vezes fez duas versões da mesma história para seus dois públicos. O conto "La mère Noël", não, esse ele publicou num livro de contos e depois numa coletânea infanto-juvenil (Sept contes, 1984), sem nenhuma alteração – talvez para ter o prazer de notar as diferenças na recepção.

Admitindo, de partida, a dualidade constitutiva do Natal – festa religiosa e profana – e num cenário que ainda não acomodou bem o sincretismo, ele propõe uma conciliação. O denominador comum passa, claro, pela paródia da condição do próprio Jesus (humano e divino), encarnada no bebê Oiselin. Tournier, que era católico, amava a existência e via no cristianismo uma saída para dignificar nossa precariedade. Não apenas no cristianismo, aliás, mas também na filosofia e em qualquer outro sistema que permitisse o exercício radical do riso e da imaginação.

Mas eu acho que o charme desse conto está na imagem de uma Mamãe Noel barbuda, ou um Papai Noel andrógino, que se despe e amamenta um bebê em plena igreja sob olhares de humanos e animais. A primazia do corpo sobre a palavra e os códigos nos acena com um hedonismo possível, livre para saciar as necessidades, fisiológicas e psíquicas, sem culpa. Como qualquer aspecto da vida humana pode ser ritualizado, o sublime está nesse mosaico de elementos conflitantes (que virou a capa do livro de 1978), o sagrado é a própria polissemia.

Ho, ho, ho

Não pretendo ensinar latim ao padre; essa sabedoria da polissemia e da paródia nós brasileiros temos e com ela produzimos nossa maior e mais impressionante festa, o carnaval. O Natal põe em jogo símbolos e emoções específicos e eu reconheço que ele às vezes é um pouco over. Contudo, eu gostaria de inspirá-los a observar essa festa com olhos de vertigem, com corpos entregues ao fluxo inexorável da história e alguma esperança no futuro. E como não se escapa facilmente às idiossincrasias, nós podemos ao menos degustar um belo peru assado com farofa.

Esta é a última newsletter de 2024. Quero agradecer a leitura e a companhia, que aprecio tanto. Desejo a todos ótimas festas e um 2025 repleto de saúde e sorte. Anota aí, venerável Strena.